PEDRO...

Existe vida por entre cantos os quais a Cidade finge não ver. Região da Vila Palmares, próximo à favela Tamarutaca e Sacadura Cabral.

Mas tem casos ainda mais urgentes que as Favelas.

Nessa região, embaixo dos viadutos várias pessoas tentam morar, fazer parte da cidade, ter o que por lei constitucional não poderia lhes ser negado. Só que aqui nessa realidade, estamos longe demais das Capitais. A reportagem andava ali por aquele meio-fio. O espaço é insalubre. Dia quente, 36 graus em Santo André, o calor era denso, condensava as disposições, enchiam rostos de suores, empapava as camisas e tornava desconfortável as caminhadas necessárias para manter a rotina do dia a dia. As avenidas seguiam.

Lotada de carros, com um cheiro insuportável de esgoto e monóxido de carbono, a vida seguia e por ali encontramos a pessoa que terá parte de sua história contada aqui. Numa sombra curta, do lado da pilastra do viaduto que liga Santo André à São Bernardo, ele tentava se acomodar. Seus pertences eram poucos. Umas folhas de papelão, duas canecas, uma escova de dentes esganiçada que ele explicou que usa apenas quando consegue pasta de dentes, umas panelas amassadas que servem como prato para as horas que se arruma comida e um cachorro, Tóbi.

Tóbi é triste, mas dócil. Carrega em seus olhos a melancolia de viver junto de seu dono, parece saber que a vida é dura, sente que nada vai mudar e resignado divide o tempo com ele, abanando seu rabo e sendo o fiel escudeiro que nosso amigo precisa. Perguntei seu nome:

“Tanto faz, escreve aí qualquer um que isso não vai mudar nada”

A reportagem insistiu, mas ele achou que a essa altura de sua vida, para quem não tem absolutamente nada, ter nome, CPF, RG, não vai mudar absolutamente nada de sua realidade. Disse que o chamaria de Pedro, ele deu com os ombros como quem se importa pouco e seguimos. Pedro topou conversar desde que pudesse seguir bebendo da garrafa que acabara de tirar do fundo de sua sacola. Um litro de pinga 51, que deu a ele algum alívio.

“Eu não tenho nada. Família, casa, documento, dinheiro, trabalho, só tenho essa roupa do meu corpo que vou usar até acabar e o resto é só sofrimento. Única coisa que posso fazer pra ter algum alívio é ficar bem louco. Descolo uma grana no farol, ou pegando latinha, compro meu corote, minha pinga e tomo porque só assim não sofro tanto”

Pedro seguiu tomando seus goles. Não tinha copo, bebia com pressa, como quem busca logo pelo alívio que ele disse que encontra, que mesmo sendo pouco, já lhe serve. O cachorro Tóbi observa. Pedro conta que o que arruma de comida ele, dá para o Tóbi, diz que seu fígado já não o deixa mais se alimentar muito bem. Isso explica o corpo magro, o rosto chupado, o olhar amarelado, as cicatrizes nos braços, marcas da guerra pela sobrevivência. Nos conta que tem 52 anos e está na rua desde muito tempo, já não se lembra quanto, exatamente.

“Pandemia? Eu não sei disso, pra mim tanto faz. Ha muito tempo tô assim sem ter como ter cuidado, sem ninguém pra ajudar, não mudou nada pra mim. As coisas ruins, as pessoas más que ficam tacando coisa na gente, tentando por fogo em nóiz, num muda nada com essa pandemia aí, nem sei o que é”

Pedro toma mais um gole e olha para a avenida, para o vai e vem dos carros apressados. A sua realidade é a de tantos em sua situação; Pedro já não pode mais escolher do que morrer, está abandonado em si mesmo. A morte é uma realidade de sua rotina, seu sono é pouco porque qualquer um escroto pode passar e lhe matar. A rotina da morte é uma constante.

Mediante a essa realidade, falar de cuidados pandêmicos chega a ser de uma utopia juvenil:

“Escutei muito o povo falando “fica em casa”. Eu nunca tive casa. Também num tinha como ter máscara, esse negócio de passar na mão, água aqui debaixo do viaduto não tem, maior luta pra conseguir tomar um banho, como que vai cuidar disso? As vezes vejo o povo que traz as marmitas aqui pra nóis com máscara, sabonete, de vez em quando pego, mas isso não resolve nada, tanto faz pra mim”

Evidente que Pedro não tem esperança de coisa nenhuma, isso lhe foi tirado, assim como tudo em sua vida. Ele quer pouco, diz que se conseguir viver uns dias sem ninguém lhe tacar pedras, sem ninguém tentar matá-lo a noite, se conseguir comer umas três vezes por semana, já está bom “Mais que isso eu não consigo porquê meu estômago dói. Não sei se tenho úlcera, cirrose, num tenho como ir no posto de saúde. Vou vivendo enquanto der, medo não tenho”

Nos despedimos. Como é possível Pedro vai seguir. A pandemia traz um cenário cruel e escancara o pior das desigualdades sociais, mostra o que não se quer ver. Mas tá em tempo:

Vejam...

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