Roberto e as alegrias dos homens

A chuva é ácida, abafada e sisuda em Santo André.

Em um janeiro quente, seco, sufocante como esse de 2021 é cada vez mais raro ver as ruas e jardins de concreto da Cidade sendo molhados mesmo que por alguns minutos. Há os que celebram, com razão. Mas também há outros tantos que apenas tem medo e assistem à pancada de verão com muita preocupação.

Do lado leste do terminal de ônibus em Santo André, próxima a entrada alternativa da CPTM, a vida segue embaixo dos viadutos. Em outros tempos, antes da construção dos trólebus, ali era a região de maior circulação de pessoas no dia a dia de quem se locomovia nos transportes públicos da Cidade. A mudança do fluxo que veio com a construção do novo local tornou aquela parte um tanto quanto mais obsoleta. Por vezes até meio fantasma, com certeza melancólica, pouquíssimas pessoas passam por ali e as que passam não estão muito preocupadas com quem mora ali mesmo, debaixo daquele viaduto.

Como o Roberto.

Da chuva que caía uma bica de água se formava e embaixo dela, quase que feliz, Roberto cantava um samba antigo (Quando morrer/me enterre na lapinha…) enquanto se lavava. Primeiro passou um sabonete pelo corpo, depois na cabeça, sem esquecer de também limpar a bermuda com a qual se banhava. Em seguida, foi até o local onde tinha uma pequena barraquinha de camping e de lá voltou com uma caneca, uma escova de dentes já com pasta e fez sua higiene bucal. De longe a reportagem observava, esperamos ele terminar seu banho, pegar uma toalha, se secar e fomos chegando para conversar. Nos apresentamos, dissemos o que propunha a conversa, ele gentilmente topou falar e começamos a prosa.

Como não poderia deixar de ser, perguntamos de imediato sobre o seu banho.

“Na rua é muito difícil descolar água. Não tem nem pra beber, imagina pra tomar um banho? Ninguém deixa a gente se lavar, muito de vez em quando um posto de gasolina, o gerente legal deixa, mas é muito difícil. Então quando tem uma chuva dessa a gente aproveita né?” Questionado se tinha medo de alguma complicação por conta disso, respondeu – “Eu vivo com medo de alguma coisa. Então aprendi a lidar do meu jeito. E fedido num posso ficar né?”

Falou de sua vida. Roberto tem 36 anos e está morando na rua desde os 25. Antes disso, morava com a mãe, que segurava sua bronca enquanto estava viva. Com sua morte, a família de Roberto não quis mais saber dele. “Eu estava desempregado e era usuário. Na verdade, ainda sou, só que mudou. Antes eu usava droga achando que me divertia, hoje uso bem menos e quando uso é pra suportar as coisas que eu passo. Não tenho mais contato com eles, acham que eu tô errado, nem sei, devo estar, só que quem sabe o que eu passo sou eu. Então se eles não querem saber de mim, não quero mais saber deles também e tá tudo certo.”

O samba, ele disse que gosta porque sua mãe cantava. Com a mãe, que ouvia muito rádio, ele pegou gosto por música antiga, mas nos conta que não ouve muito porque não tem onde. “É difícil ter um rádio né?”

Perguntado como foi o começo da Pandemia e de como descobriu o que estava acontecendo, Roberto foi pragmático.

“Andando por aí e ouvindo as conversas, fiquei sabem do que tava pegando. No começo fiquei com muito medo porque naturalmente a gente aqui na rua já é visado, pensei que sei lá, vão pôr a culpa em nóis, se pás. Depois vi que não aconteceu e pra falar a verdade, naquele começo foi bem tranquilo porque enchia de gente aqui no viaduto trazer comida, sabonete, mascara, álcool, até uns meninos médicos apareceram e deu pra ir levando bem. Depois, conforme o tempo foi passando eles foram indo embora e daí foi ficando tudo como sempre foi”

Munido de um espelho pequeno numa mão, enquanto outra escovava sua cabeleira clara e longa, Roberto seguiu nos cotando do que pensa para a frente com essa Pandemia:

“Daí você vê, passado todo esse tempo, já não tem mais gente aqui pra ajudar a gente com nada. Eu sou sozinho, faço meu corre, pego uma carroça, batalho uma reciclagem, mas tem as família aqui com criança que num tem nada né? Então esperança de mudar alguma coisa eu já não tenho muito, não. Quero ver se sigo vivo, uso minha máscara, passo álcool e tudo mais. Se eu passar por isso já tá muito bom”

A entrevista para. O telefone do repórter tocou. Se desculpou, desligou, mas Roberto perguntou:

“Que música é essa do seu telefone?”

O repórter informou a ele que era o toque do celular com a música “Jesus Cristo Alegria dos Homens” de Bach. Ele pediu para colocar de novo, se possível inteira. Colocado. Enquanto ouvia os acordes do coral final da cantata de Bach, os olhos de Roberto começaram a brilhar por conta das lágrimas que começavam a chegar. Mas ao contrário de serem tristes, vieram com um sorriso que Roberto mostrou com a música tocando.

Por alguns minutos, Roberto foi feliz

Comentários